terça-feira, 22 de setembro de 2009

PRIMAVERA


A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome,
nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.
A inclinação do sol vai marcando outras sombras;
e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que
ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar
sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra,
nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão
as cores e os perfumes e a alegria de nascer,
no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes
e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur.
Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias
tradicionais de sua nação.
Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se
pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno,
quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente,
e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas,
as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos,
sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos
bordados de flores, com os braços carregados de flores,
e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega.
É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente
se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim.
Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem,
no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem,
deste movimento do céu.
E os pássaros serão outros, com outros cantos e
outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem
não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao
sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul.
Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por
estas estradas que ainda conservam seus sentimentos
antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos;
e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra.
Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados
em redor do perfume.
E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser
lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente,
ao que vem, na rotação da eternidade.
Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa

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